terça-feira, 19 de outubro de 2010

Papa apela para uma autoridade política mundial

Em resposta à crise financeira mundial, o papa Bento XVI pede a criação de uma “verdadeira autoridade política mundial”. Esta nova “autoridade” iria impor políticas mundiais econômicas, ambientais e imigratórias para ajudar a construir uma ordem social que “está em conformidade com os padrões morais”. O apelo surge na encíclica recentemente lançada pelo papa, intitulada Caritas in Veritate, ou Amor na verdade. Essa linguagem parece refletir previsões que os adventistas do sétimo dia têm feito há muitos anos que, num momento de crise internacional, líderes religiosos apelariam a um reforço internacional de regras e normas morais. Seria a recente carta do Papa um cumprimento dessas previsões?



É necessária uma leitura completa da carta para responder a essa questão. Grande parte da carta tem conteúdos com os quais os adventistas, juntamente com a maioria dos cristãos, concordariam. O estudo analisa a atual ordem política e econômica mundial, e critica-o por criar uma divisão muito grande entre ricos e pobres, entre aqueles que têm muito e os que não têm nada.

Grande parte da preocupação do Papa pela justiça social reflete bem a mensagem do livro de Tiago, que reprova os ricos do mundo nos últimos dias por oprimir e abusar dos pobres (Tiago 5:1-6). A crítica do Papa ao capitalismo desenfreado e desordenado, e seu apelo em favor da ecologia e à ação comunitária para empresas e corporações ecoa o espírito dos profetas do Antigo e do Novo Testamentos. Seu chamado pode ser um lembrete a todos os cristãos de que nossa ética e responsabilidade não param nas portas das igrejas ou se limitam a pagarmos dízimos e ofertas. Devemos levar nossa ética de mordomia, altruísmo e cuidado em nossa vida diária e negócios.

É admirável seu aviso de que os direitos não podem ser alcançados e promovidos na falta dos deveres envolvidos. Ele observa corretamente que com a liberdade surge alguma medida de responsabilidade, ou as próprias condições de liberdade desaparecerão. Saudamos também seu reconhecimento da importância da liberdade religiosa e as ameaças a ela pelos Estados e regimes que promovem o secularismo e desejam marginalizar a religião na sociedade e na visão pública.

Porém, é preocupante quando o papa, um religioso, líder espiritual visa a aconselhar os governos sobre a criação de uma entidade política mundial que irá implementar uma série de práticas políticas, econômicas e morais por meio da força e coerção. O papa é claro quanto a esse último ponto. Ele diz que seu proposto “corpo político” deve ser “investido com o poder efetivo de garantir a segurança para todos, respeito pela justiça e pelos direitos. Deveria, obviamente, ter a autoridade para assegurar a conformidade com suas decisões de todas as partes”.

Jesus Cristo, a quem o papa afirma representar aqui na Terra, disse claramente: “Meu reino não é deste mundo. Se o Meu reino fosse deste mundo, os Meus ministros se empenhariam por Mim... mas agora o Meu reino não é daqui” (João 18:36). Um corpo político “investido” com o “poder” para garantir a “segurança” e “conformidade”, como o papa recomenda, necessitará, obviamente, da utilização de uma força policial ou militar. O que qualifica o papa para fazer recomendações ou sugerir políticas para a criação de uma entidade desse tipo?

Uma autoridade global armada e centralizada representaria significativa centralização de poder e autoridade. Como vimos na história e somos lembrados pelo historiador e pensador católico Lord Acton, “poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Seria insensato, baseado na experiência e sabedoria humana, investir uma força policial mundial centralizada de poderes irrestritos e vista grossa para que possa policiar o mundo.

Alguns poderão argumentar que o papa não está sugerindo que ele ou sua igreja estariam a cargo de tal autoridade, mas sim propõe que algum outro órgão tome essas medidas para estabilizar nossa economia mundial. Mesmo assim, essa questão não está fora de debate. A carta deixa claro que as políticas levadas a cabo pela entidade seriam para construir uma “ordem social” que “está em conformidade com a ordem moral”. A escolha das palavras do papa é significativa. Ele não diz “alguma ordem moral”, ou “uma ordem moral”, mas “a ordem moral”. Claramente, ele tem alguma ordem moral em mente. Seria qualquer outra ordem moral que não seja aquela articulada e ensinada pela Igreja Católica?

O governo vigente e o brandir de espadas da autoridade global podem acontecer por meio de um Estado não sectário. Mas aparentemente o papa deve ter em mente que teriam alguma conexão com a liderança ou ensino da Igreja Católica, talvez com ambos. Não é possível que o papa esteja apelando para a criação de uma autoridade e execução de uma ordem social e moral, e não tenha planos de desempenhar um papel, digamos, em como ela será implementada. As evidências estão em praticamente toda a história medieval, quando os ensinos clássicos da Igreja Católica destacavam uma divisão entre Igreja e Estado, mas com uma cooperação, em que o Estado brandia a espada em nome da “ordem moral” da Igreja.

Levando em conta a história e os abusos cometidos – incluindo as Cruzadas, a Inquisição, a guerra contra grupos heréticos, como o Valdenses – parece imprudente o papa atribuir a si próprio o papel de conselheiro-mor para a aplicação de uma ordem econômica, social e moral. Mas, de acordo com profecias, isso não é inesperado.

Seria esta carta o cumprimento das previsões adventistas da execução apocalíptica de uma moralidade religiosa? Não, ainda não. Essa carta é só conversa e ideias. Mas conversa e ideias significa conduzir a uma ação. E em tempos de crise e calamidade, ideias que geralmente seriam ignoradas, muitas vezes ganham mais atração. As consequências e o impacto dessa carta exigem um exame mais minucioso, pois o preço da liberdade é a vigilância constante.

(Nicholas P. Miller é diretor do Instituto de Liberdade Religiosa Internacional da Universidade de Andrews em Berrien Springs, Michigan. Artigo publicado na Adventist Review)

Tradução: Thiago Juliani