sábado, 28 de maio de 2011

Um Deus que Se cala?

Pense nas coisas mais desastrosas e terríveis que aconteceram no mundo ou na sua vida recentemente. Dizer que o mal existe e que nós sofremos no planeta terra é como chamar um cavalo de cachorrinho. Não é exagero dizer que o tópico que une toda a humanidade e nos caracteriza como moradores deste mundo é o mal e o sofrimento que nos sobrevém. Esse tema tem sido o assunto de milhares de livros, entrevistas, jornais e revistas ao longo de décadas. Porém, qual o problema disso quando estamos falando sobre a defesa da existência de Deus? Qual o problema do mal? O problema é que os teístas (pessoas que acreditam em Deus) creem que Deus é: Bom e ama a todos os seres humanos, portanto, Ele deseja livrar as criaturas que ama do mal e do sofrimento. Onisciente, portanto, Ele sabe como livrar Suas criaturas do mal e do sofrimento. Onipotente, portanto, Ele é capaz de livrar Suas criaturas do mal e do sofrimento.
Com essas informações, entendemos que Deus quer acabar com o sofrimento, Ele sabe como e pode fazer isso. Porém, se o que vemos no mundo com mais abundância é o mal e o sofrimento, logo, Deus não pode existir, ou Ele não é como nós cremos que Ele seja.

Vamos a um exemplo simples disso. Eu tenho um cachorro. Um animal de que gosto muito; tenho um carinho muito grande por ele. Para esse cachorro, sou a doadora do alimento, todas as manhãs e noites. Eu quero que ele viva, sei quando ele está com fome e tenho o poder em minhas mãos para levar o alimento até ele. Porém, vamos dizer que passo uma semana sem dar ração para o meu cachorro. O que isso significa? Ou eu não me importo com ele tanto quanto digo, ou não sei quando meu cachorro está com fome, ou não tenho o poder para lhe dar alimento. Estranho, não? Se primeiramente afirmei que tinha todas essas características, como isso não é verdade agora?

Muitas pessoas, observando esta realidade, desistem do teísmo cristão como uma crença viável e se tornam ateias e naturalistas. Os naturalistas creem que nada existe fora do nosso mundo natural, material e mecânico. Tudo é sem propósito e não há um criador e mantenedor de todas as coisas. A dificuldade de utilizar o problema do mal para transferir sua crença ao naturalismo foi vista no artigo anterior. Vamos relembrar. Com o argumento do mal, a pessoa está afirmando claramente que existe o mal no mundo. Se alguém acredita que existe o mal, também está pressupondo que exista o bem. Mas se diz que existem o bem e o mal, está implicitamente afirmando que existe uma lei moral que diferencia o bem do mal. E se existe uma lei moral, existe um doador da lei moral. Se esse doador da lei moral não existe, a lei moral também não existe. Se a lei moral não existe, não existe uma forma de distinguir o bem do mal. Se não existe uma forma de saber, então o bem e o mal na realidade não existem e o argumento é destruído em si mesmo! Portanto, um argumento que era primariamente para ir contra a existência de Deus, na realidade, é um argumento a favor dEle.

De alguma forma, portanto, precisamos de um meio para mostrar que a existência do mal e do sofrimento no mundo é coerente com a crença em Deus. Vamos fazer isso em seguida.

Primeiramente, você pode concluir de forma lógica que as informações que demos sobre o problema do mal não são contraditórias, de forma alguma. Como? Quando uma informação é contraditória em relação à outra, aquela tem que ser o exato oposto desta. Isso é lógica. Portanto, o cristianismo só seria contraditório se dissesse que: (1) Deus é todo bondoso; (2) Deus é onipotente; (3) Existe mal no mundo; (4) Não existe mal no mundo.

Obviamente não é isso que estamos querendo dizer. Por isso, quando alguém afirma que as três primeiras premissas são contraditórias, isso não é verdade. Como diria o filósofo William Rowe, professor emérito de Filosofia na Purdue University, em Indiana, nos EUA, e crítico do teísmo cristão: “Alguns filósofos sustentam que a existência do mal é logicamente incoerente com a existência do Deus teísta. Ninguém, creio eu, tem obtido sucesso em estabelecer essa extravagante afirmação. De fato, há um razoável argumento para a visão de que a existência do mal é logicamente coerente com a existência do Deus teísta.”[1]

Em segundo lugar, precisamos ter certeza de que as duas premissas de Deus ser todo poderoso e bondoso sejam cuidadosamente definidas. Por isso, se colocarmos a lógica de forma diferente, podemos ver o problema do mal de outra forma:

1. Deus existe, é onipotente, onisciente, onibenevolente e criou o mundo.

2. Deus criou um mundo que agora contém o mal e tem uma boa razão para isso.

3. Portanto, o mundo contém o mal.

Agora sim, temos uma formulação lógica e não contraditória. Só resta saber se a proposição 2 é verdadeira e se tem base para existir na lógica que construímos. Para isso, entra a pergunta “Por que então Deus permite o mal?”. A realidade é que, se cremos em um Deus infinito em sabedoria e onisciente comparado a nós que temos mente finita e extremamente limitada, não precisamos necessariamente saber a resposta. Saber as respostas para perguntas a respeito das intenções e dos planos de Deus é como a história do menino à beira do mar levando e trazendo um baldinho cheio de água até o buraco que havia feito na areia. Um homem que estava passando lhe perguntou: “O que você está tentando fazer, menino?”, e ele respondeu: “Estou trazendo toda a água do mar para dentro deste buraco na areia.” Tentar entender as intenções de Deus não raramente é como tentar colocar o infinito dentro do nosso pequeno “buraco na areia”. Porém, faremos aqui uma pequena tentativa de explicação com as experiências que percebemos no mundo. 

Primeiramente, precisamos estabelecer uma diferenciação entre dois tipos de “mal”. A maioria das pessoas concordaria que existe (1) o mal que é causado pela ação ou a falta de ação do ser humano, ou seja, um sofrimento que é consequência das escolhas feitas por outras pessoas, como alguém que morreu por levar um tiro de um bandido, e (2) o mal natural, que não é resultado das escolhas humanas, como terremotos, tornados e doenças. Vamos verificar os argumentos para esses tipos de mal.

Liberdade e livre-arbítrio

Lembro-me de ter tido uma conversa com um ateu amigo meu que havia visitado o território de Ruanda fazia pouco tempo. Relembrando os lugares por onde ele havia passado, contou-me sobre o momento em que o guia contou uma história terrível. O próprio guia havia sido um dos capturados no tempo do genocídio que ocorreu em 1994, em Ruanda, por ser tutsi, o grupo étnico que estava sendo perseguido e morto, na ocasião. Ele descreveu que num momento estava em uma fila de tutsis que seriam executados no local exato em que meu amigo estava pisando, e o homem do lado dele estava orando fervorosamente a Deus para que fosse salvo daquele momento, só para logo em seguida receber um tiro na cabeça. Meu amigo concluiu perguntando-me: “Como você pode acreditar em um Deus que permite que esse tipo de coisa aconteça?”

Deus quer apenas o bem do ser humano, por ser Sua criatura e por amá-lo tanto. Por que, então, Deus não destrói o mal? Por que Ele não impediu que aquelas 500 mil pessoas fossem mortas no genocídio de Ruanda ou em tantas outras situações? 

Se cremos que Deus fez o ser humano à Sua imagem e semelhança, cremos que Deus nos fez com a habilidade de escolher entre o certo e o errado: tomar decisões morais. Isso quer dizer que podemos decidir fazer, falar ou pensar tanto coisas ruins quanto coisas boas, sem que Deus interfira nessas decisões. Para que Deus destruísse o mal, Ele teria que ignorar e retirar completamente a habilidade de suas criaturas de introduzir o mal neste mundo. Assim fazendo, também retiraria a habilidade do ser humano de fazer o bem, e, portanto, sua habilidade de amar. Dessa forma, retirando a habilidade de fazer o mal e o bem, Deus retiraria do mundo a habilidade de amarmos a Ele próprio. Acreditar que Deus nos concede livre-arbítrio e ao mesmo tempo acreditar que Ele deveria intervir sempre que acontece o mal é negar essencialmente nossa liberdade. Deus nos criou como seres livres, e acreditar que essa liberdade deve ser controlada fica muito aquém da coerência.

Como bem disse C. S. Lewis, em seu livro O Problema do Sofrimento: “Tente excluir a possibilidade do sofrimento que a ordem da natureza e a existência do livre-arbítrio envolvem, e descobrirá que excluiu a própria vida.” 

Isso nos leva a outro elemento. Muitos então se perguntam: “Por que Deus não criou o ser humano já possuindo a habilidade de escolher apenas o certo?” Perguntar por que Deus não nos criou apenas para escolher o certo é pedir que Deus seja contraditório. Que Ele não siga as regras que Ele próprio criou: a do livre-arbítrio e a da liberdade de Sua criação. Um amor que é compelido ou persuadido não é amor. Portanto, grande parte da maldade que vemos no mundo é causada única e exclusivamente pelas escolhas e decisões do ser humano. Certa vez, G. K. Chesterton, importantíssimo poeta e pensador do século passado, respondeu da seguinte forma a um artigo publicado no jornal The Times que perguntava “O que há de errado no mundo?”: “Querido senhor, em resposta ao seu artigo ‘O que há de errado no mundo?’ – Eu sou. Com carinho, G. K. Chesterton.”[2]

O objetivo de Deus

Precisamos, também, tentar entender um pouco daquilo que parece ser mostrado na Bíblia como o objetivo maior de Deus para o ser humano. Costumamos pensar que, já que Deus nos ama e quer o nosso bem, o objetivo maior seria a felicidade. Frequentemente dizemos: “Deus quer me ver feliz, portanto, vou fazer aquilo que me faz sentir bem!” Essa afirmação é contraditória em relação àquela que vemos na Bíblia. Como? 

Realmente, Deus quer que tenhamos felicidade completa, já que Ele é onibenevolente, como a Bíblia diz. Porém, a felicidade que Ele deseja para nós não é passageira e finita como aquela que podemos ter em nossos 70-90 anos de vida aqui neste mundo. A Bíblia é muito explícita em seu direcionamento fundamental para a vida eterna oferecida por meio da salvação. Uma das formas que Deus aparentemente tem de levar o ser humano a reconhecê-Lo e a Sua vontade é por meio do sofrimento, assim levando-o eminentemente à vida eterna, onde, aí sim, ele será completamente feliz. Se crêssemos que Deus deseja nosso conforto e felicidade suprema aqui nesta vida, sim, teríamos problemas com a existência do mal, porém, por esse não ser o caso, a existência do mal não é um problema.

Você já se perguntou por que a crença e a adoração a Deus são mais notáveis nos países em que há maior sofrimento e dor? Muitos ateus utilizam esse fato para dizer que são os países mais pobres e, portanto, menos educados que creem mais em Deus e seguem mais a religião. Porém, a professora de filosofia da Universidade de Saint Louis, Dra. Eleonore Stump, faz uma importante afirmação a respeito dessa informação: é a maldade no mundo que nos leva cada vez mais a admirar e nos sentir atraídos à enorme bondade de Deus. Ao contrário do que se pensa, de que o sofrimento nos distancia de Deus, ele nos leva para mais perto dEle.[3]

Crescimento na adversidade

Pensemos no sofrimento que pode ser visto num hospital. Se pararmos para pensar em todos os procedimentos dolorosos e assustadores que são feitos num ser humano lá, concluiríamos que não seria bom levar aqueles que amamos para aquele lugar. Mas, mesmo assim, os levamos sabendo que haverá alguma coisa para minimizar ou mesmo eliminar o sofrimento. O tratamento no hospital faz com que as pessoas vivam mais tempo e com mais qualidade de vida. Na doutrina cristã é a mesma coisa. O que redime, muitas vezes, nosso sofrimento aqui na Terra é um relacionamento melhor com Deus, uma vida de acordo com a vontade dEle e, consequentemente, uma vida eterna com Ele.

Existem estudos em psicologia clínica que avaliam as consequências da bruta maldade na vida de pacientes. O que se encontrou foi uma regeneração em suas vidas, chamada de “crescimento da adversidade” ou “crescimento pós-traumático”. Muitos relatam que, depois de um terrível acontecimento como câncer de mama e ataques sexuais, paradoxalmente, sua vida se torna muito melhor. Numere pelo menos um aprendizado para sua vida que você tirou do prazer. Consegue pensar em um? Agora pense em um aprendizado que você tirou do sofrimento. Já fez uma lista em sua cabeça, não é? Não desenvolvemos coragem sem medo; não sabemos o que é perseverança sem obstáculos; não sabemos como ser humildes sem ter que servir; e não existiria compaixão se ninguém tivesse dor ou alguma necessidade. As dificuldades e obstáculos em nossa vida são a fonte número um das nossas virtudes e dos nossos aprendizados. Assim, vemos que Deus usa poderosamente o sofrimento para o nosso maior bem.

E o que dizer dos sofrimentos para os quais não vemos resultado ou objetivo imediato? Por que Deus os permite? De forma simplória, o ser humano não tem o conhecimento exaustivo de tudo o que acontece no Universo, e, portanto, não pode determinar quanto mal é necessário para revelar o bem final.

O Deus que entende

Há aqueles que dizem que Deus parece ser um Ser extremamente distante, que, se existe, não Se interessa de qualquer forma pela vida e o sofrimento humano. O que esses se negam a enxergar é que a visão cristã do mundo diz exatamente o contrário. O sofrimento de Jesus mostra que Deus não está desinteressado ou omisso em relação ao nosso sofrimento. Pelo contrário, Ele justamente quis participar das mesmas dores e sofrimentos e quis dar a solução para eles. 

Aqueles que analisarem as diferentes religiões e filosofias perceberão que a cosmovisão cristã é a única que aceita a existência do mal e do sofrimento, e oferece tanto a causa como o propósito desse sofrimento, ao mesmo tempo em que dá a força divina para suportar e passar por ele.

Ainda assim, sempre teremos a tentação de querer entender o mal no mundo, e muitas vezes é fácil falar teoricamente a respeito da dor, mas no momento em que ela bate à nossa porta, se torna muito mais difícil lidar com o problema. Por que perdi meu pai para um câncer? Por que minha família não tem o que comer? Por que meu filho teve que morrer sem nenhum motivo aparente?

Jó foi um personagem bíblico que ficou perturbado por muitos meses com questionamentos como esses. Perdeu tudo o que tinha; perdeu todos os filhos e perdeu a saúde – tudo em questão de alguns dias. Enquanto ele passou todo o livro tentando entender o porquê, no fim, em vez de Deus responder da forma como ele queria, Deus o confronta com perguntas que ele não sabia responder. Vejamos a incrível conclusão do livro de Jó, no capítulo 42:

“Então Jó respondeu ao Senhor: Agora eu compreendo que o Senhor pode fazer tudo que quiser e que ninguém pode impedir o Senhor de realizar Seus planos. O Senhor perguntou quem foi o ignorante que tentou negar a Sua sabedoria e justiça; fui eu, Senhor. Falei de coisas que eu não entendia, coisas que eu não conhecia, pois eram maravilhosas demais para mim. O Senhor me disse: Escute-me e Eu lhe farei algumas perguntas que você deve responder. Agora eu respondo: Somente agora eu conheço o Senhor de verdade! Antes eu só O conhecia de ouvir falar. Por isso, eu me arrependo de meu orgulho e me cubro de terra e de cinza para mostrar minha tristeza” (Jó 42:1-6, BV).

É como se Deus dissesse a Jó: “Filho, você nem mesmo entende como Eu controlo o mundo físico que você consegue ver, então como vai entender o mundo moral extremamente mais complexo que você não consegue enxergar – um mundo onde o resultado de bilhões de livre-escolhas feitas por seres humanos todos os dias interagem umas com as outras?”

Se fosse perguntado a respeito, ninguém iria querer passar por sofrimento, mas quando vemos o que esse terrível sentimento pode fazer por nós e pelo nosso caráter, reconhecemos que talvez realmente exista um plano maior, que não conseguimos ver nem entender. E, por incrível que pareça, houve uma pessoa que escolheu sofrer. Uma dor muito maior que qualquer situação pela qual tenhamos passado. E essa pessoa é o seu Deus. Quem melhor para entender o que este mundo enfrenta?

(Marina Garner Assis)

1. William Rowe, The Problem of Evil and Some Varieties of Atheism, p.335
2. Citado em Philip Yancey, Soul Survivor, p. 58
3. Eleonor Stump, The Mirror of Evil, p. 240, 242